Tabula Rasa

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Sabe quando bate aquela fome por um livro novo, com capa lisinha, páginas branquinhas e com aquele característico cheiro de papel nunca tocado? Então, hoje eu acordei todo feliz, tocado durante o sono pela fada gorda do livro (que na minha imaginação se assemelha muito à bibliotecária da faculdade), morrendo de vontade de comprar um livro qualquer para ler no fim de semana – e ignorando os zilhões de textos para ler para a faculdade.
Eis que vou, todo feliz e assoviante, com quarenta reais no bolso, até uma livraria perto do meu serviço.  Eu poderia comprar um livro via internet, mas a nostalgia de entrar numa livraria e ser atendido por uma bonita e sorridente atendente “Posso ajudar?” falou mais alto. Faz séculos que não compro um livro à cara-a-cara. Comprar online tem suas vantagens: Comodidade, preço filtrado e a oportunidade de receber promoções via e-mail. Mas o feitiço da gorda fada do livro dessa vez foi forte.

Pisar novamente naquela livraria me remeteu aos bons tempos da baixa literatura, onde Harry Potter era lançamento e Stephenie Meyer não era um rostinho conhecido.  Logo de cara, tive o primeiro choque: Os quatro últimos lançamentos de Paulo Coelho dividiam as vitrines com o livro “O Que Se Passa Na Cabeça dos Cachorros”. Wrong choice, maybe?
 Respirando fundo, adentro ao ambiente com ar-condicionado, só para receber o segundo tapa: A nostálgica livraria perdera consideravelmente seu espaço para uma lanchonete acoplada. Ok, eu entendo que as pessoas comem mais do que leem, e salgadinhos dão mais lucros que a venda de livros, mas não escondi meu desagrado ao sentir o característico cheiro de papel dar passagem a um aroma de pão de queijo queimado.

O terceiro choque veio logo em seguida: Na minha direita, a seção Religião. Na esquerda, Autoajuda. E na última, pequena e minúscula estante, os clássicos apertados contra os mais vendidos da cultura de massa. Eu, que tinha ido lá comprar qualquer (bom) livro para ler no final de semana, voltei para casa de mãos vazias. E como as coisas nunca acontecem por acaso, recebi em minhas mãos um texto de Edmir Perrotti que analisa Sartre e fala exatamente sobre isso.  Para o filosofo Sartre, existem dois tipos de autores: os escritores e os “fazedores” de livros. Segundo ele, as páginas escritas pelos “fazedores” de livros são tabulas rasas, exposições sem mistérios das poeiras do mundo. Algo como um texto sem profundidade, um programa dominical do SBT. E o público dos “fazedores” de livros são os Ledores, os sujeitos que se envolvem de forma mecanizada e despreocupada com a linguagem empregada na obra. Em outra mão, temos os verdadeiros escritores de livros, os artistas engajados e compromissados com a existência humana. Artistas, sim. Anthony Burgess já escrevia na década de 1970 que a literatura é a arte das palavras, como uma tela ou um quadro é a arte da pintura. Infelizmente, temos poucos artistas no mundo. E há menos ainda quem saiba compreender e admirar uma boa obra de arte. Para os artistas preocupados em fomentar a indagação e a prospecção por meio da linguagem, temos os verdadeiros leitores. Os leitores, para Sartre, são permanentes investigadores em busca de sentidos e saberes, críticos que já reconhecem a linguagem como possibilidade e instrumento de conhecimento. 

Nossa sociedade tende a dar especial atenção aos ledores, o grande público que movimenta as vendas e geram lucro para as grandes editoras. Se há cada vez mais livros no mercado, de outro lado, há cada vez menos condições para agirmos como reais leitores. Num mundo dominado por ledores, não é difícil entender por que Paulo Coelho divide a vitrine com “O Que Se Passa Na Cabeça dos Cachorros”, um livro de autoajuda que, ao contrário do título, não diz nada sobre cães, e que a doce atendente “Posso ajudar?” me tentou vender pela simbólica quantia de R$ 49.90. 
      

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